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CRÔNICA DE BOLSO #2: CURTA VIDA

26 junho 2015 1 Comentário
Mármara morreu essa noite. Primeiro, tentou dormir. Após horas se debatendo na cama, enfim descansou.

Passou por vários lugares, viu muitos demônios, os mesmos que a assombravam em vida.

Já não tinha mais medo. Já não mais sentia. Olhou-os indiferente e seguiu. Andou por estradas estreitas.

Pisou em pedras soltas e caminhou por locais traiçoeiros. Perdeu-se em pensamentos e afogou-se em possibilidades.

Morreu e continuou com os "e se". E se tentasse voltar? E se pudesse fazer diferente? E se, com a volta, a vontade de viver a acompanhasse, finalmente?

Não quis, mas voltou. Do sonho, despertou assustada. Com medo, fechou-se para o mundo que já se fechara para ela! Não levantou da cama.

O quarto não era limpo há dias. As roupas tomavam o ambiente. No chão, na estante, na cama, na escrivaninha, na janela, na porta.

Com os livros, era a mesma coisa. Já não havia espaço para ela. A esfera que ela própria criou a excluiu.

Não podia mais dormir. Não podia mais sonhar. Não podia mais viver. Vagava por aí um corpo que padecia. Uma alma que não sentia. Uma vida vazia.

Tentou por fim a tudo isso, mas Mármara era fraca. Para morrer, é preciso coragem. Nem isso ela tinha. De tanto pensar, desabou.

Caminhou pela subjetividade do seu ser. Não encontrou nada atrativo. Ela era simples, mas complexa. Bela, mas misteriosa. Inteligente, mas indiferente ao mundo.

Depois dessa noite, decidiu: precisava morrer! E logo! Já não suportava mais viver em meio aos demônios que a assombravam. Queria paz.

Deixou uma carta para a própria lápide:

"Aqui vive alguém que nunca em vida viveu

Alguém que abandonou as frustrações

Os medos e as intempéries de todo aquele sofrimento

Aqui vivo em paz. Os demônios são meus amigos

Eles cantam em meu ouvido enquanto durmo

Eles me acalentam quando sofro

Acordam-me quando temo

Abraçam-me quando choro

Aqui vive alguém que nunca teve paz

Que em vida não viveu, mas que, na morte, se encontrou."


Depois de escrevê-la, sentiu-se leve. Pegou sua mochila, caminhou pela casa. A bagunça agora a assombrava. A escuridão era tenebrosa. No entanto, ela não acendeu as luzes.

Sentou-se no chão e olhou o ambiente. Lembrou-se de todas as situações que ali viveu. Lembrou-sedo dia que leu dois livros numa madrugada e sua existência parecia minúscula, e seu sofrimento banal. Naquela madrugada chorou. Escreveu. Apagou. Lembrou-se do dia em que fumou loucamente, como se aquele ato pudesse lhe tirar do marasmo. Lembrou-se do dia em que bebeu.

A bebida era companheira fiel de Mármara. Ambas se entendiam perfeitamente. A bebida a acalmava. Sentia nela tesão, amor, carinho e paixão. Passou dois dias seguidos dormindo, depois que bebeu uma garrafa de vinho, dez cervejas e umas doses de tequila. Não havia ninguém para fazê-la parar.

Quando acordou, decidiu que queria morrer. Agora está aqui, lembrando-se de todas essas situações que ocorreram incontáveis vezes na pequena casa.

Pegou sua mochila e saiu. Estava em estado de êxtase. Não ouvia as pessoas à sua volta. Não sentia o cheiro das flores. Não ouvia a buzina dos carros. Não via um palmo à frente do nariz.

Simplesmente caminhou. Foram 15 minutos de transe. Chegou ao parque que tinha um lago, onde costumava ler quando a casa a espremia contra as paredes. Colocou a mochila no chão.

Tirou os sapatos. O vestido. A calcinha. Bagunçou o cabelo. Ela não via ninguém e, do mesmo modo, ninguém a via. Entrou no lago. Caminhou calmamente entre os patos e mergulhou.

Mergulhou para o desconhecido. Mergulhou para a escuridão. Três dias depois, seu corpo boiava entre os patos. As crianças que viram ficaram chocadas. Nunca esqueceriam aquela cena.

Mármara foi identificada. Sua casa foi aberta e suas coisas organizadas. Em meio ao caos, a carta foi avistada.

Os escritos eram seus últimos desejos. Assim o foi. Mármara vive no cemitério. Em seu túmulo, escreveram exatamente o que ela queria.

Mármara agora é feliz. Encontrou, na morte, sentido para a vida.


Lilian Oliveira
 "Eterna aprendiz, jornalista, escritora compulsiva e viajante, (sobre)vivendo no mundo e exercendo a (lou)cura"

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